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10 de novembro de 2008

TEMPESTADES



Velta Raios



Correu para a janela ainda a tempo de ver o raio a riscar o céu, mesmo por trás do castelo iluminando-o fantasmagoricamente, parecendo habitado.
Como ela gostava de trovoadas e de ver a sinuosidade dos raios. Gostava particularmente daquelas noites em que chovia tão intensamente que nada se conseguia vislumbrar através da janela. Às vezes, quando tinha sorte, juntava-se mais de uma tempestade e então a noite feérica transformava-a, sentindo-se repentinamente senhora das trevas, dos raios e do trovão.
A avó não gostava de a ver assim, percebendo vagamente que havia uma qualquer transformação nela, mas sem conseguir entender o que se passava no seu interior. Chamava-a para junto de si, ela obedecendo rapidamente por ter medo que a avó percebesse o que lhe ia dentro, apesar de só ter oito anos. Mas mal pressentia a chegada de mais um raio, corria apressada para a janela, ouvindo a avó perguntar o que se passava, ainda as palavras não estavam acabadas e já o raio fazia a sua aparição. A avó estremecia pensando que era do trovão, não querendo enfrentar que a neta sabia que o raio viria, antes de ele aparecer.
Nessa noite em que tinha havido três tempestades juntas, em que os raios e os trovões se sucediam, já não a arrancou mais da janela, ouvindo-a murmurar palavras ininteligíveis. Passou a noite em branco sem saber se haveria de contar à filha o que se passava com a neta. Já o dia rompia quando resolveu calar o que tinha acontecido, pensando que a criança tinha só oito anos e com o tempo aquele fascínio passaria, sem se lembrar que a maior parte das crianças daquela idade tinham medo de trovoadas.
Teria dez anos, quando junto à janela parecia orquestrar a trovoada, e não raras vezes a avó ficara com a sensação que a neta tinha conseguido chamar mais uma tempestade para se juntar à primeira. Vi-a rir enquanto parecia que as comandava.
Andava sobressaltada sem saber o que fazer e resolveu que nunca mais a levaria consigo nas férias de Natal e da Páscoa, visto em Lisboa as trovoadas serem raras.
Passaram-se os anos e parecia que Vera passara a ter um comportamento normal, no entender da avó. Casara, tivera um filho e quase apetecia dizer que vivera feliz para sempre, não fora ter a avó morrido e um mês depois o seu filho ter sofrido morte súbita.
A dor e a revolta desencadearam comportamentos estranhos, tão depressa ria parecendo louca, como começava a murmurar palavras ininteligíveis que ninguém a ouvira dizer antes, a não ser a avó que já não estava presente.
Certa vez foi para a varanda onde passou a noite e quem tivesse espreitado teria-a visto a fazer gestos como quem está a dirigir uma orquestra, mas depois de várias horas naquelas tentativas, teria reparado que tinha feito, por duas vezes, surgir pequenos raios, que nem tinham provocado trovões audíveis.
Desde essa noite parecera que tinha serenado.
O marido não sabendo lidar com os estranhos comportamentos, um ano depois da morte do filho, fora-se embora. Agora estava por sua conta e risco e com toda a liberdade de poder passar noites inteiras a treinar ritos e rezas, fazendo surgir com frequência raios cada vez maiores. Dominava bem aquela arte, assumindo por completo ser senhora das trevas, dos raios e do trovão.
Um dia, em Lisboa, só se falava de uma tempestade aparecida do nada, sem ninguém conseguir explicar o fenómeno, nem os meteorologistas que diziam que-havia-condições-atmosféricas-que-se-conjugavam-repentinamente-para…. blá,blá,blá.
O certo, é que alguém a terá visto e estranhado, porque passado pouco tempo, já toda a gente, no bairro em que vivia, murmurava quando a via passar e fazendo um esforço auditivo, no meio dos murmúrios percebiam-se palavras como feiticeira e mesmo bruxa.
Mudara-se e fora viver para perto de uma aldeia, numa zona descampada. Desde que ali vivia, as tempestades eram constantes, tanto de inverno como de verão, dependendo o seu tamanho do nervosismo ou do humor que Vera tivesse naquele dia ou noite. Estava a atingir a perfeição no que dizia respeito a dominar os raios e trovões, mas a inquietação era cada vez maior.
Não se sabe como, chegou aos ouvidos de alguém da aldeia o que se tinha passado em Lisboa. Os aldeões, pessoas de paz, que viviam do que a terra dava, atemorizaram-se, por lhes estar a dar grandes prejuízos, aquelas tempestades, sem tom nem som, que sempre eram acompanhadas por grandes chuvadas. Combinaram então ir falar com Vera, de quem todos gostavam.
No fim de uma tarde, já ao lusco-fusco, em pleno verão, aproximaram-se da sua casa e viram-na cá fora em pleno campo, fazendo aparecer o primeiro raio seguido de forte trovão.
Vera viu-os e correu para casa, onde se fechou sempre dominando a tempestade que se tornava mais forte a cada momento. Passado um pouco voltou para campo aberto e levantando os braços à tempestade, gritou imperiosa uma ordem
um raio desceu brandamente sobre ela, o seu grito confundindo-se com o som de um trovão


4 comentários:

Bartolomeu disse...

magnânimo texto, luminoso, faiscante, tal como o raio que antecede o trovão, um dos maiores explendores com que a natureza brinda o Homem.

claras manhãs disse...

Olá Bartolomeu

Uma beleza o Raio, então em trovoadas secas....
Aqui por Sintra há muitas, todos os invernos e chegam a juntar-se mais de duas.
Um autêntico festival de som e luz.

beijinho

Fatyly disse...

Magnífico texto que li de seguida sem parar.

De facto há tanta gente que teme as trovoadas antecipadas por relâmpagos/raios e eu sempre achei um espectáculo fabuloso.

Cá já presenciei a várias mas nunca chegam aos calcanhares das da minha terra:)

Um soba, avô de um amigo meu já falecido dizia com a sua sabedoria de velho: África nunca sofrerá de terramotos porque as cargas eléctricas vêm sempre do céu e nunca de dentro da terra. Verdade ou não...sempre que troveja e faz relâmpagos penso nele e naquele rosto tão brilhante que dizia as coisas com uma doçura infindável.

Beijos e obrigado por este momento de leitura

claras manhãs disse...

Olá Fatyly


tal com o Põr-do-Sol, que dizem não haver igual como em África!


beijinho