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29 de setembro de 2008

A CASA DELA








Claude Théberge




Quis fazer uma casa de paredes abertas, engenheiros e arquitetos chamaram-lhe louca.
Mas ela teimosa não desistiu do sonho. Queria fazer a sua casa para aquele homem. Chegado o outono, resolveu que era tempo de a começar. Já tinha feito a movimentação de terras necessárias, já tinha acarinhado o terreno onde a casa seria implantada.
Metade dela ficava no campo, a outra metade na praia mesmo virada para o mar, protegida pelo vento por uma rocha enorme onde as ondas sempre iam bater fazendo remoinhos de encantar.
Um dia, porque o cansaço era medonho, por ser mais difícil do que o sonhado, parou. braços caídos ao longo do corpo, mãos calejadas, pés inchados, escorrendo suor, voltou costas a tudo
A meio do percurso de ida voltou para recomeçar, sem ter conseguido esquecer aquela casa que começava a ter forma, que queria dar de presente àquele homem especial, por quem estava perdida. Uma das paredes já formada por arbustos bem cerrados onde embutiu uma janela com vista para o mar, fazia esquina com o fogão de lenha e a sua respectiva chaminé. Entre os dois pôs uma torneira para controlar a nascente que jorrava água amor, ou pérolas
Acendeu o fogão com a lenha que tinha ali ao lado, começando a fazer bolachas, o cheiro espalhando-se pelos rolos de fumo que se transformavam nas mais leves e cheirosas nuvens. Esticou o braço e trouxe uma delas para mais perto, onde pendurou o quadro da sua vida.
A cozinha dava para a seara de trigo e ao lado da porta que não existia, fez o quarto que haveria de ser deles, mágico. Foi buscar os mais alvos lençois de linho, guardados naquele armário onde tudo o que precisava aparecia, bastava para isso pensar no que gostava de ter ali mesmo à mão de semear, com um deles envolveu o colchão, tão fofo, feito de amores-perfeitos e jasmim e com o outro, bordado com lírios brancos, fez a cama.
Antes de o ir buscar para ver a obra já acabada, deitou-se, cansada, com sono, na seara que a aconchegou nas suas espigas e bocejando, embalada com o som das ondas que batiam na areia, adormeceu.
Acordou revitalizada, o lume no fogão ainda ardia, tomou banho na nascente que nesse dia jorrava pérolas e amor. Ele sentiu o cheiro que emanava daquele canto, das bolachas, dela e descobriu o caminho que o traria até ali. O beijo que lhe deu quando chegou, antes mesmo de em sua volta olhar, embalou-a em ondas de amor em espasmos de desejo, mas ficou parado a admirar, quando no quarto entrou, a parede feita de lírios que se derramava pelo lençol da cama.
Despiu-se de tudo, para que a visse pela primeira vez e ele por seu lado fez outro tanto, deixando cair as máscaras que com cuidado, como todos, tinham composto. Translúcidos da luz que neles transportavam, quase não se reconheceram na beleza do ser, que por tanto tempo tinham guardado.
Foi nessa cama que caíram enlaçados os corpos ondeando, começando a dança mágica, flores pelo ar pairando, sons entregues ao vento, beijos levados à seara, mergulhando em mares que se espraiavam, ora calmos ora revoltos, em infinito azul

27 de setembro de 2008

SILÊNCIO







Desenho de Joaquim Baltazar, para este livro




Deram-se as mãos como se fossem versos
Sorrindo como se tivessem asas
No seu olhar os sonhos mais diversos
Nos corasções acesos como brasas

E sem pudor nem mais posturas graves
Uma outra luz doirava os seus cabelos
Em gestos desenhados e suaves
Deram-se os corpos nus jovens e belos

E nessa praia branca que não finda
A areia guarda a sua história linda
No silencio das bocas consagrada

E das mãos dadas fez-se madrugada
Tudo foi dito sem ser dito nada
E as aves cantam esse Amor ainda



Poema de FERNANDO TAVARES RODRIGUES

In XXI Sonetos de Amor, ficheiro que me foi enviado por NONAS


26 de setembro de 2008

BONS BLOGUES




Há dois blogs, para mim, maravilhosos, que descobri há pouco tempo.
Tão diferentes um do outro, pelo menos aparentemente, que parecem que se opõem.

O DIÁRIO DE UM HOMEM BANAL do Horácio Salgado.
Um Must no género de Diário. Banalidade, não existe ali. Template Zen, com um só post visível. Muitíssimo bem escrito.
A não perder.

O NÃO HÁ RIOS IGUAIS, de Madalena Pestana.
É todo poesia. Tanto as imagens, sempre belíssimas, como o template luxuriante, apesar de ser só em tons de azul, como as palavras de um sentimento e de uma beleza imensa.
A não perder

Gosto muito destes dois blogs. Mesmo muito.


24 de setembro de 2008

QUERO OUTRA





Wojciech Gaczek




Desenrosco a cabeça e ponho-a a meus pés com vontade de a desfazer
não a quero. Quero outro alguém que não pense como eu, que seja mais racional, que não sinta tanto
Olho-a e vejo-lhe as feições correctas, os olhos ainda brilhantes como a pedir que a ponha no lugar certo
o lugar certo é que não sei qual será, em cima dos meus ombros é que não, que quero outro alguém que não sinta o mesmo que eu
Quero alguém que não se importe com o que vê, que não se enjoe deste mundo, que não queira o que quero, lhe agrade a hipocrisia, que queira ir comer à mão dos que lhe oferecem nada, fingindo ficar feliz com tanto
cabelos compridos debaixo dos meus pés, com vontade de a triturar, quero outra, não esta, quero alguém mais racional
boca bem delineada naturalmente vermelha, nariz perfeito, não quero esta que se emociona que tem o coração ao pé da boca, que é frontal e só diz o que pensa, não, esta não me serve, quero uma outra que saiba estar e sorrir quando vê sacanagens à sua volta e diz sim, quando devia dizer não
Agarro-a pelos cabelos e balanço-a com vontade de a desfazer, ela olhando-me pedindo que a ponha no seu lugar, enquanto a deixo cair em qualquer vão
no seu lugar é que não é possível, não a quero em cima dos meus ombros, quero outra em vez dela, que saiba que o mundo é preto e que mesmo assim jure que ele é branco, se sinta bem vivendo nele, que consiga viver na mentira rindo e se faça amiga de quem o não é, mas por trás só diga mal, por ser assim que o mundo é, por ser assim que todos se sentem bem, quero quem eu não sou, quero outra diferente jamais igual e não me tento a encaixá-la onde deveria ser o seu lugar.
Tenho pena dela sem corpo, tenho pena de mim sem cabeça, as duas para aqui infelizes por não sabermos a quem pertencemos, ela a julgar que é minha eu a saber que minha não é, mas não consigo andar sem cabeça, ainda aqui estou a olhar para ela, com pena e ela para mim, duas que eram uma e que agora são coisa nenhuma.
Levanto-me e preparo-me para ir à procura de outra.
No entanto ainda olho para trás e vejo-lhe o sorriso confiante esperando que faça o que é o normal e a volte a colocar em cima dos ombros.
Estalam gargalhadas no ar, por ela e por mim, por estarmos tão desfasadas, mas volto-lhe as costas, deixando-a no chão e saio confiante por saber que o que mais há por aí é quem eu quero passar a ser.


22 de setembro de 2008

GUERRA NO IRAQUE



Depois de ter visto o filme In the Valley of Elah










naquele chão não havia nada a não ser ódio e morte.
Chão infértil e deserto, sangue empapando a terra, não deixando que naquele bocado o vento levante o pó, chão manchado, parecendo um puzzle do sangue escorrido de tantos corpos, uns completamente esvaídos, outros esventrados, outros ainda mutilados
Dentro do tanque iam todos animados, a música alta, as gargalhadas ferozes, sem se darem conta de como tinham mudado, as gargalhadas que agora pareciam rugidos de animais selvagens, a quem tanto fazia atropelar um cão como uma criança.
Ficou o mundo chocado com fotografias que apareceram nos jornais, eles soldados as vítimas arranjadas à pressa, sem perceberem nada do que se estava a passar, por terem os media falado, porque as hierarquias sabiam bem do que se passava e enquanto não viesse a lume, que a rapaziada e mulherada se fosse entretendo.
As ordens eram para matar todos, porque eram todos terroristas, qual seria o mal de andar com eles por uma trela, se até matavam crianças, atropelando-as com os tanques, por pensarem que se abrandassem ou se desviassem, poderiam cair numa qualquer armadilha, só o medo e as ordens os levavam à crueldade, sem dela se aperceberem, mas sabendo depois da criança terem morto, que a armadilha não existia.


Não, o Senhor não consegue perceber, mas éramos camaradas, amigos verdadeiros. Lá, se fosse preciso, daria a vida por ele, mas aqui.....tudo é tão diferente…
Não sei porque o matei....chateou-me.....passei-me.....não consegui parar a raiva que me provocou. Os outros não tiveram nada a ver com isso, quiseram-me salvar e ajudaram-me a queimá-lo. Era dado como desertor e ficava tudo acabado.
Não posso estar arrependido, não há nada para me arrepender. Eu era amigo dele, todos éramos amigos dele. Andávamos sempre os quatro.....mas começava a causar-nos problemas.....ele não andava bem!
Puseram-nos aqui, para nos darem apoio psiquiátrico, que não precisamos, saímos da ação e para aqui estamos sem nada para fazer, inventando jogos para nos entretermos, continuando a comprar droga.....
Mas o que é que tem já lá não estarmos? Saímos da guerra inteiros, e depois? Que querem?
Continuamos como éramos, nem mais nem menos. Não percebe? Deixámos de ser crianças, agora somos o que aprendemos a ser, não podemos deitar fora aprendizagens que nos formaram o carácter.
Tudo o que antes nos foi ensinado? Mas antes quando? Antes da guerra?
Mas se não nos serviu para nada!!! serviu para chorarmos a primeira morte injusta e inqualificável que infligimos. Julga que alguma vez poderíamos continuar com os mesmos códigos sem enlouquecermos?
Tivemos de nos socorrer de códigos completamente diferentes se quisemos sobreviver e fomo-nos apurando diariamente, ficando mais fortes mentalmente, mais indiferentes, mais drogados
Lá, claro que a consumíamos, tão fácil de arranjar, mesmo ali à mão de semear, para nos podermos aguentar....como cá
Se quiser pôr nesses termos, até lhe dou razão....
É verdade já não sentimos, por isso sermos desumanos, mas só por isso, só porque deixámos de ter sentimentos no mais puro do seu significado, deixámos de sentir, deixámos de tudo sentir, até o ódio, até entre a amizade e a inimizade deixaram de fazer sentido as diferenças, até amor deixámos de sentir, por qualquer ser, até por aqueles que nos deram a vida.
Não sentimos nada.
Quando sairmos daqui? Será a mesma coisa, corpos bem treinados, mentes alerta, droga no bolso, máquinas bem oleadas


20 de setembro de 2008

EXALTAÇÃO



Aumentem o volume do som.






És onde bebo a luz e a madrugada
Perdido entre essas coxas de cetim
A tua boca fresca e aveludada
Onde há restos de seiva e de jasmim

E os segundos contigo duram meses
E é só a vida toda que te peçoo
Depois de ter morrido tantas vezes
No peito triunfal que não mereqo

O teu sabor a fruta e a saudade
De musa favorita dos aedos
Exalta em mim de novo essa vontade

Volúpias fantasias e segredos
Tu és um vendaval de claridade
Que incendeia a lingua dos meus dedos



Poema de FERNANDO TAVARES RODRIGUES

In XXI Sonetos de Amor ficheiro que me foi enviado por NONAS

19 de setembro de 2008

FIM DE SEMANA NO MINHO


Pousada se São Bento na Caniçada

Maria tinha tido a ideia de irem só mulheres passar um fim de semana, sozinhas e conseguiram que ela também largasse a sua varanda, o que as admirou, mas ela encolheu os ombros e disse logo que sim, dizendo que Mónica deveria precisar de todas.
Olharam-na desconfiadas, mas um fim de semana pode dar para tantas conversas....
Foram para a Pousada de São bento na Caniçada, pretendendo fugir às praias.
Mónica estava alegre por passar esses dias sem pensar no Pedro
Ela, parecia indiferente, centrada num mundo só seu.
Depois do jantar de sexta-feira resolveram dar um passeio a pé, numa noite quente e sem vento, poucas luzes e céu estrelado, indo até lá baixo à Caniçada propriamente dita.
É mais difícil do que pensava, começou Mónica em quanto desciam estrada fora, ainda todas em silêncio, esperando que começasse a falar a que mais precisava de desabafar, o Pedro tem pouco tempo livre e eu também, não pode passar noites fora, por isso é quase sempre de corrida.
- Mas estás bem? perguntou Rosa
- estou bem quando estou com ele ou a trabalhar, estávamos bem! mas a nossa relação está cada vez mais afunilada. Há cama a mais....
- como cama a mais? perguntou Maria
- eu percebo o que ela está a dizer. Não há passeios, não há idas ao cinema, porque como têm pouco tempo preferem passá-lo juntos. Aconteceu-me com o Rodrigo. Mas fazem falta todas as outras coisas que se fazem quando podemos partilhar uma pessoa por inteiro. Só agora com o Filipe, percebi bem quanto castradora pode ser uma relação em que um, ou os dois são casados.
- sim é isso, acrescenta Mónica, apesar de ele me telefonar imensas vezes...há esperas demais e sinto falta ...da companhia dele. Ou sentia, já nem a mim me percebo. Como tu dizias ando entre o inferno e o paraíso, mas agora, já há mais inferno
- há quanto tempo andas com ele, pergunta Rosa
- há quase onze meses. Às vezes parece que já passou o encantamento….
- tão cedo! Disse Maria, quase para os seus botões
mas Mónica ouviu-a e disse com ar triste
- não é só do lado dele; acho que a mim também o encantamento está a passar
A conversa pairava no ar, sem ninguém interromper o silêncio
- o meu problema são os filhos do Filipe....ele quer que vamos viver juntos e a mim não me apetecia outra coisa, mas vai ser difícil os filhos aceitarem….
- essa agora! exclamou Maria interrompendo-a, mas que idade têm os filhos dele e quanto tempo estás com eles?
- Têm 16 e 18 anos.
No outro dia fomos jantar todos, eles tinham sido avisados e correu mal. A que tem 18 anos foi de uma agressividade enorme comigo e com ele. Parecia até que o pai se tinha separado da mãe, por minha causa. O Filipe está divorciado há dez anos e eu só entrei na vida dele ainda não há um ano.
- Não és capaz de passar por cima desse problema? perguntou Rosa, não consegues dominar a situação? Não te estou a conhecer…
- é a primeira vez que o Filipe apresenta uma mulher aos filhos e já lhes disse que iríamos viver juntos....a filha deve achar que lhe estou a roubar o pai....não sei se quero ser a madrasta má e de 15 em 15 dias ter problemas.
Ou por outra, tenho a certeza absoluta que não quero passar por isso.
- e vais perder o Filipe por causa deles? pergunta Mónica, achas que não tens direito a ser feliz?
- acho que o Filipe, se quer viver comigo, tem de tratar da situação; os filhos não são nenhuns bebés e eu não estou para ser maltratada por eles e ficar sem saber como agir. Há sempre a hipótese de vivermos juntos e quando for os fins de semana com os filhos ele ir para casa com eles.
- e que diz ele a isso
- ainda não lhe expus a situação, Rosa. Na verdade só me lembrei dela agora aqui a conversar convosco. É bom podermo-nos afastar, parece que se vêem as coisas mais claramente
Mónica que tinha ficado calada sem intervir no resto da conversa, diz de repente
- sabem? Acho que a minha relação com o Pedro está por um fio…
- então acaba Mónica. Sei que é preciso coragem, mas é o melhor que podes fazer para não te vires a sentir rejeitada. Não deixes arrastar, vai ser mais doloroso, porque vais ver o estilhaçar da relação e se for ele a acabar vais ficar mais ferida.
Tens razão, vou ver se me mentalizo. Já nem sei se gosto dele ou não. Mas também vou agora em trabalho a Barcelona...pode ser que consiga.
- Tenta com muita força, Mónica, disse Maria e virando-se continuou a conversa
- mas achas que o Filipe vai aceitar bem a sugestão?
- Não sei. Provalmente se fosse eu aceitava-a muito mal, por isso o melhor será ele dar com a resposta em vez de ser eu a dar-lhe a ideia....
O que acham vocês?
Mas nenhuma delas lhe respondeu
Rosa mudou a conversa quando lhes perguntou se já tinham pensado na subida que tinham pela frente, para voltar à Pousada
Houve uma gargalhada geral
- hoje vamos todas dormir que nem santas, exclamou Mónica
O resto do fim de semana, posta a conversa séria em dia, foi passado entre risos e conversas, passeios à Serra da Peneda e Gerez, conversas e risos daquelas que só as mulheres as sabem ter, quando estão entre amigas.

17 de setembro de 2008

ESPELHO, REFLEXO OU REFLETOR?



Parece não ter nada a ver, mas tem tudo








Frederic Larson




Três janelas perfeitamente reflectidas na água, espelhos umas das outras, pensas tu pensou ele, mas na realidade, duas das persianas corridas e da outra janela sai um jorro de luz que o faz pensar que quem estará ali a viver gosta tanto da noite como ele, mas no seu espelhado a luz está apagada
Ou será vice-versa por já nem saber o que é real e o que é reflexo
Mas fica a pensar como é que vive aquela gente de luz apagada que no espelho está acesa, que deve ser o interior deles que será tão rico que jorra luz para o espelho apesar de estar apagada
ou será que o que lá vai dentro é tão negro que não deixa passar a luz para o seu reflexo?
Pára a olhar o que será o real e o imaginado, que dão tão má conta de si que o refletor e o refletido não são iguais.
A imagem que vemos ao espelho nunca é a imagem que os outros têm de nós, sempre nos vemos melhores do que os outros nos vêem. É o espelho que nos deforma ou seremos nós que deformamos o que vemos, é a pergunta que se coloca ao olhar a janela iluminada e a apagada, já sem saber qual delas será o espelho e o espelhado.
Deixa-se ir na onda do pensamento e percebe que sempre teve medo de dar o salto para o outro lado do espelho, por isso lhe fazer tanta confusão a janela de onde sai um jorro de luz que não é apanhado ou no espelho, ou no espelhado.
A confusão já é demais e tenta focar o olhar para ter a certeza de onde parte o real...esfrega os olhos que já deve ser do cansaço de tanto e com tanta atenção olhar, sem conseguir fazer a destrinça entre o real e o imaginado
Cada vez observa com mais atenção e já ia dar um grito de júbilo por pensar que já sabia qual era o espelho, quando percebe que o que julgava espelhado tem mais pormenores e definição que o espelho e fica outra vez na confusão.
Sem se atrever, ainda, a dar o completo salto para o outro lado do espelho, fica quieto, pensando que terá de o fazer mais cedo ou mais tarde, então porque não já, encolhe-se com medo do que virá a encontrar, que isto de ir ao fundo de si fá-lo-á rever o que sabe lá está, mas que por todos os meios quer manter escondido.
Dá um passo devagar, já ficou partido ao meio e acaba por dar o salto para o meio da confusão de tantos segredos que tem guardado com tanta aplicação.
Vai encontrando os mais leves e conforme vai andando aparecem os mais pesados, os que mais doem e quando chega ao meio, será o meio ou só o início, com esperança aguarda que seja o fim, apetece-lhe voltar para trás, sem saber qual o dragão que guarda dentro de si, sem saber o que guardará o dragão, sem querer de nada se lembrar.
É então que ele aparece, deitando chispas para o ar, zangado por há tanto não o querer ir visitar, cheiro a podre que tudo invade, treme de medo por não conseguir perceber o que estará guardando, pedindo-lhe palavras passe, aproximando-se a cada vez que erra. Completamente em pânico grita para o ar uma qualquer charada, que não sabia existir, amansando o dragão que o deixa ver uma porta de trevas que sabe não querer abrir.
Fica ali a olhar, a medir, se valerá a pena prosseguir ou para trás voltar.
Já que chegou tão fundo, o melhor será empurrar aquela maldita porta, que tanto medo lhe faz.
Devagar empurra-a, chiando, rangendo como quem não se quer abrir, a não ser para quem tenha mais vontade de tudo conhecer. Empurra-a decidido, abre-se num repente e o que vê faz-lhe lançar um grito lancinante de terror, é sugado para o meio da acção que já uma vez viveu e a dor é tão intensa que rebenta seu peito, apaga-lhe os olhos, estrangula-lhe a garganta que quer gritar sem nenhum som sair, entregue a si próprio, como sempre esteve, abandonado por quem não devia, sem nunca quererem saber dele, cada vez mais estrangulado, sem conseguir respirar, percebe que é agora que vai desaparecer, então consegue gritar como quem grita pela vida
Dá por ele já deste lado do espelho, cheio de tremuras, sem esquecer o que reviveu, mas quando olha para as janelas reflectidas na água, vê as três iluminadas e iluminados os seus reflexos.

15 de setembro de 2008

ESPERAMOS TODOS



Marília Campos - ausência



Pelo dia que se arrasta, pelo telefonema que não chega, pelo amor que se atrasa, pela vida que não vivemos
esperamos
pelo almoço que marcámos, já vai para dois meses e que todos os dias é adiado, pelo nevoeiro que queremos se abra, pela luz que queremos irradie num dia por nós marcado
esperamos todos
que dentro de nós se abra o coração, que o sorriso apareça, sempre dependente de um outro olhar, sem percebermos que só virá completamente, quando for verdadeiro o nosso eu, pela alegria intrínseca que saibamos fazer renascer
esperamos
pela vida fora, o que queremos que nos traga, incapazes de perceber que somos nós que a construímos dia-a-dia, com os nossos pensamentos e as nossas reacções
esperamos
todos esperamos
tudo da vida, como se ela fosse rebuçado embrulhado em papel dourado, sentindo-nos infelizes por a realidade ser mais dura e não haver nem embrulho, nem papel dourado, nem rebuçado
esperamos pela felicidade, trazida nas mãos por outros, sempre por outros, que imaginámos serem o que não são, deixando cair o sorriso e a alegria, à primeira desilusão que chega
esperamos todos
esperamos
que as dúvidas se desfaçam, que o nevoeiro não apareça, que os anjos desçam, sabendo que eles não têm sexo, esperamos por um sim, por um não, por um futuro, que já o é no segundo seguinte
esperamos
todos esperamos
enquanto a vida avança, que o tempo corre depressa e damos por nós, já no meio, esperando ainda sabe-se lá porquê, olhando o relógio, esquecendo o tempo, contando os minutos, esquecendo o tempo, contando os segundos e o tempo avançando
esperamos todos
esperamos
pela vida que continua a correr por entre fiapos de dias que se passam sem se viver, e assim vamos deixando escorrer por nós vagarosamente a vida que não vivemos, esperamos pelo fim que se aproxima sem dele nos darmos conta, porque
esperamos sempre
todos esperamos sempre
qualquer coisa, um telefonema que não chega, um amor que se atrasa, um futuro que se arrasta.


14 de setembro de 2008

SEREIA









Jim Warren





Vestida de corais e de sargaços
Do corpo revelando os seus segredos
Senhora do seu gesto e dos seus passos
Quando desperta ao toque dos meus dedos

Mas por indecisão ou por vaidade
Como de uma bandeja não servida
Tardia essential fatalidade
Arrebata também a própria vida

Seus olhos dois farois no nevoeiro
A naufragar num sentimento misto
E eu juvenil incauto marinheiro

Falta profundidade em tudo isto
Vontade de partir noutro veleiro
Acreditar naquilo que conquisto



Poema de FERNANDO TAVARES RODRIGUES


12 de setembro de 2008

ARRÁBIDA II



Lovers of Normandie - Claude Théberge




Naquele verão fui tão feliz!
Almoçávamos quase todos os dias e uma vez por semana encontrávamo-nos, onde quer que fosse, para sermos um, os dois.
Os lençóis voavam, a cama desfazia-se, o colchão onde deixávamos as nossas marcas, tudo nos recebia, na vez seguinte éramos reconhecidos e parecia que os lençóis esvoaçavam com mais rapidez, que as marcas deixadas no colchão nos acolhia
Havia alegria beijos e abraços, conversas risos e ternura. Houve tudo!
Passeios de encantar, Azeitão, Palmela, Sintra, principalmente Monserrate, um deslumbramento feito a dois, onde cada árvore já conhecida, ajudada pela aragem nos segredava murmúrios de encantar, cada esquina, cada curva daquele Monserrate mágico, era nosso. Tudo nos encantava
Vogávamos em mar de amor, acolhidos em embarcação feita de promessas
Depois devagarinho, sem quase se dar por isso, foram-se espaçando os encontros, não havia tantos almoços, dizia que tinha mais trabalho, o que seria natural e eu fui deixando acontecer o afastamento, achando-o natural
Os passeios acabaram, ainda havia os lençóis pelo ar, alegria e beijos, conversa risos e ternura, e havia a espera, a insuportável espera, principalmente quando chegavam as festas ou os fins de semana prolongados, mas de seguida aparecia o paraíso
Ah! Ela tinha razão quanto ao sofrimento e quanto ao precisar de todas as amigas. Foram vezes sem conta que fui ter com ela à sua varanda e bem via o olhar que me deitava, sem nada dizer, fazendo-me sentir privilegiada por a ter como amiga.
Quando chegaram as férias, a espera de insuportável adormeceu meus sentidos acabando por não sentir sequer a falta ou saudades, ou qualquer vontade, passando a vegetar. Não fossem elas, as amigas e teria desaparecido para dentro do meu canto
Quando voltou, já não havia paraíso, continuou a haver lençois pelo ar e beijos, mas já sem risos alegria ou ternura, mas continuava a haver conversa já só quase de circunstância, o meu nome não era pronunciado, passando-me a tratar por amor, o que me arrepiava.
A dualidade veio e instalou-se dentro de mim. Não me apetecia ir, mas ia, começando a magicar desculpas, já tantas quantas as dele. A separação estava eminente, embora nenhum dos dois desse o primeiro passo, tivesse a primeira conversa, ou dissesse a primeira palavra.
Arrastávamo-nos



10 de setembro de 2008

VIOLÊNCIA







O Triunfo da Morte - Pieter Bruegel





Estou no cais envolto em nevoeiro, vejo o barco aproximar-se e só penso se poderei nele partir sabendo que ninguém dará pela minha falta, sempre envolto em nevoeiro como se fosse só um sonho
fugir ao dia-a-dia de mais uma garrafa na mão, poder fugir de mim, de todos, das memórias amarguradas, do que foi a minha infância tão sem amor, em que levei tanta pancada
Ainda o vejo de cinto na mão e ainda ouço o barulho da fivela abater na carne das pernas, ainda sinto a mesma revolta, não sou capaz de esquecer nem de deixar de sentir o que na altura senti, e volto-me com redobrada violência contra a mulher que vive ao meu lado e os murros saem com a mesma lentidão, com a mesma rapidez do cair do cinto, que nunca mais chegava, que vinha rápido de mais, que nunca mais parava.
Cega-me a visão de a ver estendida no chão e a raiva vem com a mesma força que vinha quando o cinto chegava e pontapeio por querer que me faça frente e não, que se encolha no canto
Quando me passa o toldado, essa força negra e desesperante que me agarra, de quem não sou capaz de me separar, fica-me a humilhação de ter feito o que fiz
mas logo me vem rápida a ideia de não ter culpa de assim ter sido educado, de me terem implantado o ódio sem apelo nem agravo e de ter uma mulher que vive ao meu lado que não se importa se lhe bato ou não, porque sabe que a amo, que isto são maneiras de deitar o ódio fora, que demorará mais algum tempo até a sovar mais uma vez ou outra.
Quero partir que ninguém dará pela minha falta, tão cheio de desamor, tão cheio de ódio, ninguém dará pela minha falta, quero desaparecer para qualquer lado, deixar cá o desespero e a garrafa que trago sempre ao lado, por andar cada vez mais negro e as garrafas serem cada vez mais, se ao menos pudesse partir para um qualquer outro lugar, poderia certamente deixar as memórias para trás e recomeçar de novo, mas preciso de dinheiro e o velho nunca mais morre para eu poder herdar.
Rijo, continua rijo, avarento como poucos e só quero que possa morrer ou um ou outro, que preciso de dinheiro e só eles o têm e nem sequer o emprestam. Quero ir daqui para fora, já fiz dívidas sobre a herança que hei de vir a receber e nenhum dos dois morre, nunca mais morrem, nem um nem outro, velhos que para nada servem e que nunca mais morrem, nunca mais morrem e ando tão precisado de dinheiro e ainda morro eu primeiro.


8 de setembro de 2008

NUVEM

É só musical. Ouçam-no enquanto lêem. Depois, se o quiserem continuar a ouvir, é convosco.






René Margrite



Maria Antónia, tinha quase sempre a porta aberta, de feitio crédulo e optimista, deixava que por ela entrasse meio-mundo. Uma porta cuja antecâmara era uma praia, onde de vez em quando, muito raramente, tinha necessidade de convidar alguém a sair.
Passada a praia. sentia-se um oásis de paz e de bem-querer
Um dia quando a porta só estava entreaberta, viu entrar uma nuvem pequenina, clarinha, mas que mal chegou à entrada, começou a deixar cair água em abundância, molhando tudo e todos que ali se encontravam e pondo-os em debandada
Ficou a olhar a nuvem que quase lhe sorria e que com toda a calma, como se mais nada tivesse para fazer, se encaminhava para ela, voando com u-ma len-ti-dão
Quando lhe roçou no braço, Maria Antónia ficou enfeitiçada olhando o que a nuvem lhe tentava mostrar, mas não queria acreditar que pudesse haver tão grande sonho, um sonho que lhe levaria uma vida inteira para realizar
e a nuvem, devagarinho foi-se infiltrando, enchendo-a de um bem estar e Maria Antónia pensou ser capaz de arcar com aquele sonho tão belo. A nuvem não a largava envolvendo-a cada vez mais e melhor, naquele encanto que era só seu.
Mas como é de calcular uma nuvem, embora possa não parecer, tem mais para fazer e teve de deixar Maria Antónia à sua sorte e à sua vontade de fazer crescer o sonho ou de o deixar mirrar.
Maria Antónia começou entusiasmada, mas o sonho, talvez por ser tão grande, ou tão belo, ou tão mágico, fez-lhe medo
andou com ele para a frente e para trás, revirou-o por todos os lados, avançou um bocadinho, a medo, mas cada vez o sentia mais pesado e quando um sonho nos embala é sempre alegre e ligeiro, pensava Maria Antónia com ela própria, enquanto o ia deixando deslizar por ela abaixo, com receio das desilusões que ainda lhe poderiam aparecer durante a realização daquele sonho.
Acabou por o deixar escorregar até aos seus pés, com as lágrimas a correrem-lhe pela cara abaixo, desesperada por já não ser capaz de, aos 42 anos, agarrar com força e não largar um tão mágico sonho.
A nuvem apareceu insistente e Maria Antónia aceitou-a mais uma vez de braços abertos, mas quando ela se infiltrou já não lhe viu tanto encanto, já não lhe reconheceu a magia, já não achou tão belo o sonho e devagarinho, muito devagarinho foi baixando os braços, vencida.
A nuvem partiu mais escura do que quando tinha entrado, mais pesada, rejeitada.

6 de setembro de 2008

Gotan Project - Santa Maria (Del Buen Ayre)


E vamos para o TANGO

NESTE VIDEO BELÍSSIMO, FEITO DE SOMBRAS E LUZ

ONDE CADA MEIO GESTO, CADA MEIO PASSO, DESTILA SENSUALIDADE COMO SÓ O TANGO O FAZ

TANGO-PASION



E ESTE? UMA MARAVILHA DE IRONIA E TÃO BEM DANÇADO

VAMO-NOS DIVERTIR?

Al Pacino - Scent of a Woman



ESTE OBRIGATÓRIO:

AL PACINO

CARLOS GARDEL - CAMINITO



ACABO COM O ETERNO CARLOS GARDEL E 'CAMINITO'

Abba - I Have A Dream




Ligeiramente mais tarde, fez parte do mesmo processo do que o de baixo

YEEEESS!!!!

ABBA - 1978 Chiquitita

Sempre que precisei de encontrar forças, onde não sabia que elas existiam, a música esteve ligada a essa procura.
Chiquitita dos ABBA, fez parte de um desses processos. Não sei porquê, mas sei que me limpava a alma e os olhos
Ouvi esta música e a sua letra centenas de vezes.
Não sei como funciona o processo, mas comigo sempre resultou.
Começavam por cair lágrimas, depois, bem mais tarde, havia uma renovação, e as lágrimas voltavam, para nunca mais partirem.


Sempre que ouço Chiquitita, ainda hoje, elas correm.
Traz uma emoção e relembra um tempo de vitória
A minha pequena homenagem aos ABBA, em tempos de ABBA's mania.

4 de setembro de 2008

JUNTOS?







Estavam ali virados um para o outro e era como não estivesse ninguém
Cadeiras reclináveis de travessas de madeira com almofadas, em frente o mar tão calmo, azul esverdeado, rochas enormes quase ilhas flutuando e nós invisíveis para os outros e quase também para nós próprios.
Calados, contemplando a diferença de cor no horizonte que desta vez não se misturava entre o céu tão azul e o mar tão turquesa
Às vezes sabe tão bem estar calado, normalmente no mesmo mundo, mas hoje eu sabia que estávamos em mundos diferentes, porque tu nunca adivinharias que já ali não estava, nem a cabeça, nem...ia a dizer que o coração também não estaria, mas não tenho a certeza de nada, só sei que tenho vontade de entreabrir uma porta que sempre pensei fechada, já lá vão quinze anos, mas que desta vez a vontade é forte de poder por uma vez espreitar.
Não sei explicar de onde vem esta vontade, mesmo sabendo o que vou arriscar e tantas vezes nem ter dado hipótese de ela se instalar, não sei porquê desta vez soube-me bem e por mais que pense nos contras e não veja grandes prós, estou tentada a entreabrir a porta

Não, desta vez não estamos no mesmo mundo, estamos de pensamentos afastados e sei lá o que te vai no pensamento, mas que estás diferente isso nota-se
És sempre a mesma, nem sei onde está a diferença, mas sei que o perigo ronda e nem sei como te chegar. Tens uma espécie de ausência, não ouves à primeira, estás mais distraída e com o olhar em alvo, fixo e parece que sou transparente.
Há uns meses atrás se estivéssemos aqui os dois, haveria uma auréola à nossa volta e hoje cada um tem a sua, menos bela, menos brilhante
Tocamos as mãos, mas a tua não agarra a minha, ficando só encostadas
Não sei como te chegar, não sei o que te dizer e tenho medo do que possas vir a contar.
Estamos aqui os dois quase como estranhos
Nunca se conhece ninguém, pensamos que sim quando estamos bem, mas não, nunca se conhece ninguém

Não tenho nada para lhe dizer, nada para contar a não ser a vontade de a porta atravessar, nem saudades tenho de nada, nem da nossa vida de antes, nem do que deixei adiado, tenho só esta curiosidade que me abafa, de poder entreabrir a porta para ver o que está do outro lado, mas se falar, os problemas surgirão como um mar encrespado e como não há nada para contar, fico aqui calada, quase com pena de não haver nada para ser dito

O que me doi é poder estar não estando a teu lado, ou quando me olhas e não me vês, ou quando falo e não me ouves, ou como ainda há um bocadinho que nem sentiste a minha mão a tocar-te.
Não, o que doi é eu estar a teu lado e tu não estares estando, é isso que fere.
Se te perguntar o que tens dizes-me que nada
E assim vai passando o tempo destas férias sonhadas pelos dois e só vividas por mim sem ter troco do teu lado.
Está-se tão bem não está, pergunta ela e eu, cobardemente, digo que sim.

3 de setembro de 2008

COMENTÁRIO PASSADO A POST




Este comentário foi feito pela CRIS do blog OS MEUS ENCANTOS
Uma beleza de um conto
Obrigado Cris, por o teres feito aqui, do fundo do coração





Robert Duval






Ela ficou. Já volto, disse-lhe. Ficou a olhar a abóbada, a olhar tudo, a sorver aquele ambiente tão calmo, enquanto o esperava! Quando ele voltou, beijou-a, e, ao ouvido apenas lhe disse que agora sim, podiam ir.
Nem ela nada lhe perguntou, nem ele nada lhe disse.
Eram, estavam. A felicidade corria á frente deles, voltava, rodopiava, menina, ria muito.
Olhavam-na com a maior serenidade. Amavam-se, amavam-na. Felizes os três. Tão felizes!
............
Pousou a fotografia.Levantou-se, vagarosamente, e, abeirou-se da janela.
Lá fora, aquele par. Percebeu que ele lhe disse algo. Viu-o afastar-se e ficou a vê-la, tão serena, olhando tudo, como que esperando. Ele voltou, acercou-se dela e sussurrou-lhe de novo algo. Sorriam, felizes, tão felizes, de mão dada. Nem ele nada lhe dizia, nem ela nada falava. Iam, juntos.
Uma lágrima rolou pela sua face, e, foi pousar-lhe na mão, e outra correu, a fazer-lhe companhia.
Afastou-se da janela, foi sentar-se no sofá. A seu lado, uma estória. Pegou nela, afagou-a, abriu a caixinha e viu o anel. Não chorou. Sorriu. Tal como ela, aquele par iria ver, a felicidade correr à sua frente, saltaricar, rir, e eles olhá-la-iam, e, amar-se-iam, felizes, tão felizes e seriam, seriam e viver-se-iam, para sempre
............
Dissera-lhe que esperasse. Ela sorriu e perguntou-lhe onde ia. Ele disse que era surpresa, que aguardasse, que não demorava. Deixo-lhe um beijo para lhe fazer companhia. qie não saísse dali porque já voltava. Ela sentiu que alguém a olhava. Ali, naquela janela, viu ama velhinha que lhe sorria. Ela sorriu também. Quando ele voltou. trazia um ramo de flores. A senhora continuava a olhá-los. Ela disse-lhe que a aguardasse, que não demorava. Atravessou a rua, abeirou-se da janela e deu, sorrindo, uma flor àquela senhora tão bonita.
Sentiu cair-lhe uma lágrima na mão e logo outra lhe veio fazer companhia. Quando olhou de novo, viu no parapeito, a flor que lhe havia atirado, gentilmente.
Correu para ele, feliz, abraçou-o. Porque havia feito aquilo? Conhecia-a? Que não, ou, que sim, não importava. Que já podiam ir. E foram, sem que antes, ela não deixasse de se voltar para trás, uma última vez. Que tinha sido aquilo? Nada, respondeu-lhe. Não insistiu, mas, achou-a ainda mais bonita, e, estava.
Dentro dela, trazia um aceno, duas lágrimas, e, parte da felicidade suficiente para eles. A outra parte, sabia-a segura,risonha a saltaricar, feliz, numa sala, e, que,logo logo, iria sentar-se no colo pleno de recordações tão doces duma velha senhora que havia visto, naquela janela.



1 de setembro de 2008

MADRUGADA FORA





Mónica Nikolova




Dois passos lado a lado pela areia molhada, “passos que imprimem e traçam” na beira da praia deserta nesta madrugada e vão delineando os contornos do mar que está manso e de maré vazia.
Há vento que traz a espuma leve das ondas, que se vai desfazendo como quem desfaz castelos de areia de sonhos puros, que não se aguentam quando confrontados entre os dois
Um sonha alto, outro sonha baixo e lá vão andando pela vida fora não se encontrando a não ser quando os sonhos se cruzam e os deixam cair na praia deserta neste meio de madrugada, transformados já em espuma leve das ondas, que se desfazem mais facilmente que castelos de areia.
Ainda eram crianças e sonharam-se juntos nas brincadeiras de polícias e ladrões, na macaca e ao peão, comoviam-se com nada por estarem juntos riam-se de tudo.
Mais tarde namoraram-se que o primeiro amor, dizem, fica para a vida.
Um foi para fora, o outro ficou cá dentro sufocado e aceitou quem primeiro lhe tocou com doçura, não estando preparado, que ninguém nos prepara para as desilusões em que a vida, fértil, nos traz. O tempo foi correndo e corroendo o dia-a-dia em que se desespera por um outro amor, que talvez com esse a vida fosse mais fácil e lhe trouxesse a felicidade.
Ainda não percebermos que a Felicidade não nos é dada, que temos de a conquistar diariamente, esforçadamente, empenhadamente
Assim se desfez a vida que tinham e quando apareceu o amor primeiro, foi feliz durante algum tempo, porque ninguém nos prepara para as desilusões que nos traz o ser imaginado, ninguém nos diz que há um real por trás do imaginado e que tem defeitos, que na nossa imaginação não foram vislumbrados, ninguém nos diz que temos de saber que paixão e imaginação andam de mãos dadas, ninguém nos prepara para a dura realidade, a não ser a vida por nós experimentada
Lá vão lado a lado, “passos que imprimem e traçam” na areia molhada na beira da praia deserta deste fim de madrugada, que eram um só até meio, depois se fazem lado a lado, cada vez mais longe até por fim cada um o percorre como se não tivessem havido sonhos cruzados durante tanto tempo, enquanto o vento traz a espuma leve das ondas,que se vai desfazendo tão rapidamente como quem desfaz castelos de areia de puros sonhos
O dia começa a amanhecer, um à beira da praia deserta, o outro ausente dela.