skip to main | skip to sidebar

10 de setembro de 2008

VIOLÊNCIA







O Triunfo da Morte - Pieter Bruegel





Estou no cais envolto em nevoeiro, vejo o barco aproximar-se e só penso se poderei nele partir sabendo que ninguém dará pela minha falta, sempre envolto em nevoeiro como se fosse só um sonho
fugir ao dia-a-dia de mais uma garrafa na mão, poder fugir de mim, de todos, das memórias amarguradas, do que foi a minha infância tão sem amor, em que levei tanta pancada
Ainda o vejo de cinto na mão e ainda ouço o barulho da fivela abater na carne das pernas, ainda sinto a mesma revolta, não sou capaz de esquecer nem de deixar de sentir o que na altura senti, e volto-me com redobrada violência contra a mulher que vive ao meu lado e os murros saem com a mesma lentidão, com a mesma rapidez do cair do cinto, que nunca mais chegava, que vinha rápido de mais, que nunca mais parava.
Cega-me a visão de a ver estendida no chão e a raiva vem com a mesma força que vinha quando o cinto chegava e pontapeio por querer que me faça frente e não, que se encolha no canto
Quando me passa o toldado, essa força negra e desesperante que me agarra, de quem não sou capaz de me separar, fica-me a humilhação de ter feito o que fiz
mas logo me vem rápida a ideia de não ter culpa de assim ter sido educado, de me terem implantado o ódio sem apelo nem agravo e de ter uma mulher que vive ao meu lado que não se importa se lhe bato ou não, porque sabe que a amo, que isto são maneiras de deitar o ódio fora, que demorará mais algum tempo até a sovar mais uma vez ou outra.
Quero partir que ninguém dará pela minha falta, tão cheio de desamor, tão cheio de ódio, ninguém dará pela minha falta, quero desaparecer para qualquer lado, deixar cá o desespero e a garrafa que trago sempre ao lado, por andar cada vez mais negro e as garrafas serem cada vez mais, se ao menos pudesse partir para um qualquer outro lugar, poderia certamente deixar as memórias para trás e recomeçar de novo, mas preciso de dinheiro e o velho nunca mais morre para eu poder herdar.
Rijo, continua rijo, avarento como poucos e só quero que possa morrer ou um ou outro, que preciso de dinheiro e só eles o têm e nem sequer o emprestam. Quero ir daqui para fora, já fiz dívidas sobre a herança que hei de vir a receber e nenhum dos dois morre, nunca mais morrem, nem um nem outro, velhos que para nada servem e que nunca mais morrem, nunca mais morrem e ando tão precisado de dinheiro e ainda morro eu primeiro.


16 comentários:

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

:-)

o dinheiro gera violência...maldito seja!

beio, o video é maravilhoso também.

claras manhãs disse...

Olá Júlia


Muitas vezes sim, infelizmente
mesmo em pessoas não violentas, o que aqui não seria o caso.


Beijo grande, Júlia

Fatyly disse...

Por vezes a pancada levada em menino gera homens violentos e as malditas das heranças igualmente geram violência.

Igualmente em mulheres!

Um cenário dantesco e bem descritivo do que se passa na cabeça de um homem monstro que se escuda e desforra as suas frustacções e ganâncias no alcool e no seu saco de pancada.

Solução????? não digo mas...nestes e noutros casos que decorrem a céu aberto...não acredito numa patética recuperação!

Beijos

Pena disse...

Linda Amiga:
Um texto profundo. Mexe com os sentimentos de qualquer um pela "violência" do sentir das palavras.
"...Quando me passa o toldado, essa força negra e desesperante que me agarra, de quem não sou capaz de me separar, fica-me a humilhação de ter feito o que fiz
mas logo me vem rápida a ideia de não ter culpa de assim ter sido educado, de me terem implantado o ódio sem apelo nem agravo e de ter uma mulher que vive ao meu lado que não se importa se lhe bato ou não, porque sabe que a amo, que isto são maneiras de deitar o ódio fora, que demorará mais algum tempo até a sovar mais uma vez ou outra..."

A vida é bela. Esqueça momentos, instantes, menos agradáveis.
Sinta a felicidade que "mora" em si, a amizade e o encanto de existir.
Sempre a apreciar o que faz.
Beijinhos de respeito imenso.
Sempre a admirar o que faz.

pena

Seja feliz, POR FAVOR.
A felicidade "sente-se", Vive-se!
"Costrua-a" com o seu enorme talento, alegria e autenticidade de si maravilhosa.
Força!

Meg disse...

Tenho pena de não ter podido ver o vídeo. Bruegel, como ele próprio.
E do texto e da sua violência retenho "...ter uma mulher que vive ao meu lado que não se importa se lhe bato ou não, porque sabe que a amo, que isto são maneiras de deitar o ódio fora, que demorará mais algum tempo até a sovar mais uma vez ou outra..."
E fico a pensar, inevitavelmente.
Um abraço

claras manhãs disse...

Olá Fatyly

Isto vem ainda por ter sabido que já vão em 37 mulheres mortas este ano, por violência doméstica.

Também sabia o que lhe haveria de fazer, qual recuperação qualquê!

beijinho

claras manhãs disse...

Olá Pena


vivemos num mundo violento e eu nunca quis passar de lado na vida.
Há notícias que nos chocam, que nos fazem arrancar textos violentos, para assim se perceber melhor o que pode ou não provocar violência.
Eu sou feliz, Pena!
Claro que há dias melhores e outros não tão bons, mas por acaso foi num dia bom que escrevi este texto.
Obrigado pelos conselhos

beijinhos

claras manhãs disse...

Olá Meg

tens é de pensar que foram mortas 37 mulheres, este ano de 2008 e ainda não acabaou, por violência doméstica, só em Portugal.
Não conseguiste ver o video?
porque terá sido?


Beijinho

Metradomo disse...

Desculpe-me, meu objetivo não é falar mal da rotina, quanto mais da minha, o que seria maldizer minha vida inteira. Ademais, sou incapaz de dizer mal ou bem, pois não enxergo tais pólos; não conheço o bom senso, somente o senso comum. Bem... desculpe-me...

Creio que não sentem minha falta. Creio ainda mais que, devido a isto, também não sentirão minha falta.

Meg disse...

Agora sim, vi o vídeo.
E Continuo a dizer-te do meu espanto. Será que ainda há mulheres que pensam que os maridos que lhe batem as amam? Será possível? Em 2008, em que a violência doméstica é crime público? Depois das notícias das mortes?
Que espécie de selva é esta?
É isto que não consigo entender.
Nem eu nem ninguém, quero crer.
Um abraço

claras manhãs disse...

Olá Horácio Salgado

Bem-vindo
Também não disse que estava a falar mal da rotina.
Dissertei sobre a rotina, que foi o que o seu texto me provocou.
Eu, Horácio, não conhço bom senso nem senso comum.
Recuso os dois. De vez em quando tenho de ceder....

Beijinho

claras manhãs disse...

Olá Meg

Ah!
Esse sim também é o meu espanto. mas que continua a haver, isso continua, pelo menos elas desculpam quem assim as maltrata com o amor que dizem eles lhes têm.
Já viste como seria, se não lhes tivessem amor? sorriso triste
Não, nunca as perceberei, a não ser vendo-as como vítimas, aí a conversa é outra, por ser tão complexo a vitimização.

beijinho grande Meg

xistosa, josé torres disse...

A música suavizou um pouco.
Ao ler ... parece que sentimos as palavras, perdão ... o "cinto-amor".
Nem sei se as pancadas são brandas, se o amor ...(?), se as leis encerradas na garrafa.

Será que as "iras da vinha" (e não só), se erradicarão?

claras manhãs disse...

Olá Xistosa


Nesta história, a ideia era dar como acabada a personagem principal.
Dá-la como tendo morrido, penso que seria a única maneira de se poder erradicar as "iras"

Foi essa a ideia ao acabar com "e ainda morro eu primeiro"
Não sei se consegui passar a ideia, mas foi o pensado.

Beijinho

Mateso disse...

A violência existe em todos nós. Não é justificativa, é somente domada, educada, o que sei eu... mas sempre rebenta, seja em acto fisico , verbal, ou puro pensamento.
O homem é a medida de todas as coisas, sejam elas as que forem...
Gostei da quase ferocidade silábica.
Bj.

claras manhãs disse...

Olá Mateso


Assisti a muita ferocidade, por isso conhecer bem as palavras.


beijinho