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31 de outubro de 2008

COISAS DA CHUVA



JAN DEICHNER


Maria Augusta gostava de sol, gostava da vida, da vida transparente que se podia reflectir em tons de todas as cores
mas gostava também da chuva, do cheiro a terra molhada que a preenchia dessa certeza de continuidade desse planeta tão belo e tão azul
chovia, chovia e ela aproveitava e ia até lá fora para receber essa dádiva que era poder brincar enquanto a água caía, por gostar tanto de patinhar, ficou-lhe da infância quando era tão proibido aparecer molhada em casa.
Andava sempre com chapéu-de-chuva, tinha-o inclusive no carro. Passava lá o ano inteiro, no banco de trás, todas as estações do ano, mas quando chegava a altura de o usar, ainda o tirava para fora, passeando-se com ele no braço enquanto deixava a chuva cair em cima de si, cara voltada paras os céus, apanhando os pingos de sorriso aberto e feliz.
Alguns deviam pensar que não era boa da cabeça, que se tinha passado, mas sentia sempre uma alegria intensa e nem queria saber se a chuva era forte ou não.
Só não gostava da ventania, excepção feita quando estava em casa e a ouvia aconchegada junto á lareira, então aí tornava a ser feliz.
No meio de toda esta alegria e felicidade havia uma incoerência.
Quando via a chuva a escorrer pelos vidros da janela, qualquer janela em qualquer sítio, quando as gotas parecem lágrimas que lambem o vidro, não se conseguia conter e as lágrimas escorriam-lhe contínuas pelas faces.
Sempre que lhe perguntávamos o que se passava com ela, encolhia os ombros e continuava com as tarefas que tinha entre mãos. As lágrimas continuando a escorrer com a mesma lentidão que as gotas da chuva lambendo os vidros
Tornava-se lenta, numa transformação que sempre nos apanhava desprevenidos, porque se chovesse e as gotas não escorressem pelos vidros da sua janela, nada se passava, aliás até era raro acontecer, visto o gabinete dela, não sei se de propósito ou por pura casualidade, estar virado para o lado em que era raro o vento empurrar a chuva até aos vidros.
A explicação que dava quando conseguia falar é que lhe entrava uma tal tristeza dentro, sem saber como nem porquê, como uma enxurrada que tudo leva à sua frente, até lhe chegarem as lágrimas que não conseguia reter. Sentia uma tal infelicidade....
Num dia em que mais uma vez me tentava explicar o fenómeno, acrescentou baixinho
- ainda bem que isto nunca acontece quando estou sozinha, porque não sei o que faria....
Foi como se tivesse havido uma ameaça, dormente, silenciosa, profunda, parecida com o som distante, baixo, lento e rouco de um trovão. Estremeci, olhei-a de frente e perguntei-lhe o que queria dizer com aquela frase
Ela encolheu os ombros e disse – nada de especial – Agarrei-a pelos ombros
- nada de especial, não Maria Augusta. Desculpa lá, mas isso não é explicação para o que ouvi. Diz lá o que se passa contigo, eu ajudo-te, sabes que sou tua amiga
- não se passa nada. Que queres que te diga? Acontece-me desde há uns anos. Choro sempre que vejo a chuva a bater nas janelas, mas não sei porquê e nem te atrevas em falar em psiquiatras ou psicólogos. Acontece duas ou três vezes por ano, se tanto...não pode ser a minha maneira de limpar tanta porcaria que vemos por aí?
- mas porque disseste aquela frase?
- porque sinto uma infelicidade imensa, sem saber de onde vem, como se sempre ali estivesse, como se nunca me tivesse deixado, como fizesse parte integrante de mim e eu andasse a fingir que sou feliz, ou alegre ou sei lá o quê e durante aqueles momentos não sei quem sou, não me reconheço e tenho medo, mesmo pavor, que essa infelicidade vença e fique para sempre
Abracei-a, sem saber o que lhe dizer
Maria Augusta morreu há três anos, de doença. Um dia que estava com ela no hospital, a chuva batia na janela, ela olhava-a sem chorar, olhou-a durante muito tempo, até me dizer baixinho que a infelicidade sempre tinha morado nela
ela só a tinha tentado espantar



12 comentários:

Ricardo António Alves disse...

Final sublime, imagem muito bela.

E que musicassa!... De que álbum do Caetano é?

claras manhãs disse...

Olá Ricardo

sorriso
Isso é que são elogios!
Obrigado

É do album Transa, It's a Long Way

Mas o Ricardo anda em beleza, então o Silva!

beijinho

Nuno de Sousa disse...

Sabe tão bem uns abraçinhos :-) belo texto minha amiga... bom andar por aqui.
Deixo aqui também um bom abraçinho e que tenhas um bom fds,
Nuno

Desnuda disse...

Querida,

primeiro te agradeço a gentileza do seu comentário no blog de Nuno, que bondosamente me incentivou com suas palavras amáveis. E chego aqui me deslumbro com este belíssimo texto e, não menos belo e interessante espaço.

Tenho uma amiga virtual, Constança Lucas que está linkado em outro blog meu, o sentimentos-sam.blogspot, que escreve maravilhosamente bem e é uma excelente artista plástica. Tem um desenho de Constança que me veio a mente ao ler esse texto...Neste desenho, tem uma frase simples e imensa em conteúdo: " dentro sabemos sentimos, o que será?".


Grande beijo!

claras manhãs disse...

Olá Nuninho

É verdade, nada melhor que abraços de amigos.

beijinho

claras manhãs disse...

Olá Sam

minha querida, tu não precisas de incentivos, escreves maravilhosamente.

Obrigado pelos elogios.
Fui procurar a Constança, mas ela tem tanto por onde se procurar que torna difícil encontrar o desenho de que falas.
Mas a frase que deixaste é um mundo para explorar.

Beijinho

Fatyly disse...

Maria Augusta sofria de algo que nem ela sabia a origem e o medo era terrível silenciado dentro de si. Sempre infeliz lutando contra a maré com a rejeição imediata de Psiquiatras e psicólogos num estigma pertinente que caí sobre quem procura ajuda.
Teve a sorte de ter um abraço amigo na hora certa e companhia no final da sua vida, onde já não chorou!

Gostei imenso, porque é uma lição de vida!

Beijocas

claras manhãs disse...

Olá Fatyly

sorriso

Ainda bem que gostaste.
Eu gostei de escrever.

Beijinho

Cláudia Silva e Cunha disse...

Belo texto!
GOstei muito do seu blog, é daqueles onde as horas voam mto facilmente! :)
**

claras manhãs disse...

Olá Cláudia


Obrigado.
O seu blog tem coisas giríssimas, gostei mais dos brincos e colares, do que das malas, mas isso deve-se à minha idade.

Beijinho

Anónimo disse...

Que texto excelente texto... e que bela imagem!

Beijinho

claras manhãs disse...

Olá Luis

Estás bem?
Sabes que tenho saudades dos teus escritos?
Obrigado Luís

beijinho