mas gostava também da chuva, do cheiro a terra molhada que a preenchia dessa certeza de continuidade desse planeta tão belo e tão azul
chovia, chovia e ela aproveitava e ia até lá fora para receber essa dádiva que era poder brincar enquanto a água caía, por gostar tanto de patinhar, ficou-lhe da infância quando era tão proibido aparecer molhada em casa.
Andava sempre com chapéu-de-chuva, tinha-o inclusive no carro. Passava lá o ano inteiro, no banco de trás, todas as estações do ano, mas quando chegava a altura de o usar, ainda o tirava para fora, passeando-se com ele no braço enquanto deixava a chuva cair em cima de si, cara voltada paras os céus, apanhando os pingos de sorriso aberto e feliz.
Alguns deviam pensar que não era boa da cabeça, que se tinha passado, mas sentia sempre uma alegria intensa e nem queria saber se a chuva era forte ou não.
Só não gostava da ventania, excepção feita quando estava em casa e a ouvia aconchegada junto á lareira, então aí tornava a ser feliz.
No meio de toda esta alegria e felicidade havia uma incoerência.
Quando via a chuva a escorrer pelos vidros da janela, qualquer janela em qualquer sítio, quando as gotas parecem lágrimas que lambem o vidro, não se conseguia conter e as lágrimas escorriam-lhe contínuas pelas faces.
Sempre que lhe perguntávamos o que se passava com ela, encolhia os ombros e continuava com as tarefas que tinha entre mãos. As lágrimas continuando a escorrer com a mesma lentidão que as gotas da chuva lambendo os vidros
Tornava-se lenta, numa transformação que sempre nos apanhava desprevenidos, porque se chovesse e as gotas não escorressem pelos vidros da sua janela, nada se passava, aliás até era raro acontecer, visto o gabinete dela, não sei se de propósito ou por pura casualidade, estar virado para o lado em que era raro o vento empurrar a chuva até aos vidros.
A explicação que dava quando conseguia falar é que lhe entrava uma tal tristeza dentro, sem saber como nem porquê, como uma enxurrada que tudo leva à sua frente, até lhe chegarem as lágrimas que não conseguia reter. Sentia uma tal infelicidade....
Num dia em que mais uma vez me tentava explicar o fenómeno, acrescentou baixinho
- ainda bem que isto nunca acontece quando estou sozinha, porque não sei o que faria....
Foi como se tivesse havido uma ameaça, dormente, silenciosa, profunda, parecida com o som distante, baixo, lento e rouco de um trovão. Estremeci, olhei-a de frente e perguntei-lhe o que queria dizer com aquela frase
Ela encolheu os ombros e disse – nada de especial – Agarrei-a pelos ombros
- nada de especial, não Maria Augusta. Desculpa lá, mas isso não é explicação para o que ouvi. Diz lá o que se passa contigo, eu ajudo-te, sabes que sou tua amiga
- não se passa nada. Que queres que te diga? Acontece-me desde há uns anos. Choro sempre que vejo a chuva a bater nas janelas, mas não sei porquê e nem te atrevas em falar em psiquiatras ou psicólogos. Acontece duas ou três vezes por ano, se tanto...não pode ser a minha maneira de limpar tanta porcaria que vemos por aí?
- mas porque disseste aquela frase?
- porque sinto uma infelicidade imensa, sem saber de onde vem, como se sempre ali estivesse, como se nunca me tivesse deixado, como fizesse parte integrante de mim e eu andasse a fingir que sou feliz, ou alegre ou sei lá o quê e durante aqueles momentos não sei quem sou, não me reconheço e tenho medo, mesmo pavor, que essa infelicidade vença e fique para sempre
Abracei-a, sem saber o que lhe dizer
Maria Augusta morreu há três anos, de doença. Um dia que estava com ela no hospital, a chuva batia na janela, ela olhava-a sem chorar, olhou-a durante muito tempo, até me dizer baixinho que a infelicidade sempre tinha morado nela
ela só a tinha tentado espantar